Falar de religião implica tocar no tema sincretismo, especialmente no Brasil ou pelo menos mais evidentemente aqui do que noutros países. Temos modos de sentir e vivenciar as religiões com características de nossa cultura. Temos a Umbanda, uma religião que nasceu no Brasil, fruto do encontro da religião colonial católica com os cultos trazidos pelos africanos escravizados, permeados por elementos dos povos indígenas e por fim com a doutrina espírita explicitada nos escritos de Kardec, importada da França por intelectuais brasileiros. Portanto, falar de sincretismo é algo necessário em nosso meio cultural, pois não só a Umbanda possui elementos sincréticos, citamos essa religião como exemplo óbvio para o tema. O autor Leonardo Boff trata de forma bastante rica o tema sincretismo em sua obra Igreja: Carisma e Poder, texto altamente recomendado para quem desejar se aprofundar no assunto. E é Boff que nos explica:
Num estudo bastante minucioso, temos mostrado alhures, que o cristianismo puro não existe, nunca existiu nem pode existir. O divino sempre se dá em mediações humanas. Estas se comportam face a ele dialeticamente: constituem o divino na concreção da história (identidade), revelando-o, bem como o negam, por sua limitação intrínseca (não identidade), velando-o. O que existe concretamente é sempre a Igreja(s) como expressão histórico-cultural e objetivação religiosa de cristianismo, vivendo a dialética da afirmação e da negação de todas as concretizações. (Boff, 1981, p. 150) (grifo nosso)
Da mesma forma outras expressões religiosas, salvo melhor juízo, não podem expressar-se de forma pura, por conta da mediação humana, permeada pela subjetividade que interpreta e reformula tudo que chega ao ser humano, ficando a cargo das instituições religiosas a concretização mais formal e padronizada do que costumamos chamar de ortodoxia ou doutrina. A prova disto é que mesmo dentro da fé cristã existem várias Igrejas, ou seja, várias concretizações da religião cristã.
Mas, será que o sincretismo é algo negativo? O próprio Boff responde:
O sincretismo, portanto, não constitui um mal necessário nem representa uma patologia da religião pura. É sua normalidade como momento de encarnação, expressão e objetivação de uma fé ou experiência religiosa. Pode, como veremos, apresentar patologias. Mas fundamentalmente emerge como fenômeno universal constitutivo de toda expressão religiosa. (Boff, 1981, p. 151)
Assim, desejar que uma religião seja pura em sua expressão pelos seus seguidores é algo desconsidera a realidade do grupo, e provocará cismas como normalmente ocorre nas Igrejas Evangélicas, as quais contam centenas ou milhares em nosso país, cada qual buscando atender o maior ou menor grau de ortodoxia. A aceitação de que o povo em seu meio sociocultural tem demandas e modos de ser que as religiões devem buscar entender e atender são assim explicitadas por Boff:
Impõe-se hoje em dia cada vez a convicção de que o presente sincretismo cristão e católico se tornou incapaz de fazer justiça aos direitos de outra cultura e de responder adequadamente a exigências da alma negra. [...] A umbanda dá a impressão de ser um protesto popular contra todas as formas religiosas importadas e insuficientemente adaptadas ao ambiente [...] Daí se depreende que o futuro do cristianismo no Brasil está subordinado à capacidade maior ou menor que possui de articular um novo sincretismo. Sua atual expressão cultural nos quadros da cultura greco-romano-germânica pertence a sua glória passada. E tudo indica que será definitivamente passada para a nova cultura que entre nós se esboça. (Boff, 1981, p. 170)
Esperamos ter estimulado a reflexão sobre pureza doutrinária versus sincretismo, algo que julgamos ser visto apenas de forma negativa tanto pelos adeptos quanto pelas lideranças religiosas. Desejamos que um novo olhar sobre o tema, conforme lançado por Leonardo Boff, possa auxiliar na reelaboração das expressões religiosas no sentido de assumir as adaptações necessárias ao meio sociocultural brasileiro, evidentemente sem distorcer a essência das propostas religiosas, porque aceitar que haja sincretismo não implica em converter-se ao que vem de fora mas, aceitar, entender e dialogar visando à conversão para a identidade que abarca o que está nela sincretizado.
Referência
BOFF, Leonardo. IGREJA: CARISMA E PODER-Ensaios de Eclesiologia Militante. 2. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1981.
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